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Com a entrada de João Archer de Carvalho para a Hidroeléctrica do Douro (HED), em Julho de 1953, iniciou-se uma das experiências mais marcantes da cultura arquitectónica portuguesa da segunda metade do século xx. Na época, o Estado Novo aposta fortemente no investimento energético, em que Portugal é, então, deficitário. A cultura da arquitectura moderna que se manifestara abertamente durante o 1º Congresso Nacional de Arquitectura de 1948 é naturalmente adequada a este esforço de infra-estruturação.
     Na HED, uma equipa de arquitectos, formados no ambiente “progressista” da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) na década de 1950, dentro dos ideais do Movimento Moderno, é completada no ano seguinte com o ingresso de mais dois jovens arquitectos, Manuel Nunes de Almeida e Rogério Ramos (1927--1976). Juntam-se-lhes ainda outros profissionais, que integram o Gabinete de Arquitectura em formação e que funcionará em exclusividade para a HED até 1969. Trabalhando em conjunto, seriam posteriormente responsáveis por uma diversidade de projectos ligados à exploração dos recursos hídricos em várias zonas do país (estruturas de produção de energia, residenciais, comerciais e religiosas, p.e.). O arranque dá-se precisamente na região portuguesa do Douro Internacional com a intervenção nas barragens de Picote, de Miranda e da Bemposta.
     João Archer e Manuel Nunes de Almeida nasceram no Porto, em 1928 e 1924, respectivamente. O primeiro trabalha com João Andresen, entre 1949 e 1953, destacando-se a sua participação nos planos de urbanização de Sernancelhe de 1951 e de Penacova do ano seguinte, ou na casa Lino Gaspar (Caxias, 1954). O bairro residencial para as caixas de Previdência em Bragança, desenhado no mesmo escritório, serve então de base à tese apresentada em 1953 na ESBAP para obtenção do diploma de arquitecto, onde alcança a nota máxima de 20 valores. Nesse mesmo ano, colabora pontualmente com Alfredo Viana de Lima, designadamente no Bloco da Rua da Costa Cabral no Porto. Em 1951, participa com Andresen na exposição de trabalhos da ODAM (Organização dos Arquitectos Modernos). Assina projectos com Rogério Ramos para privados, como a loja de discos Clave, na Rua Júlio Dinis no Porto, a casa Dr. Jorge Marques Guedes em São Mamede de Infesta, ou o posto de gasolina da Shell em Matosinhos. Da sua actividade corporativa salienta-se a participação na Secção Distrital Norte do Sindicato Nacional dos Arquitectos (SNA) com Eduardo Matos e José Carlos Loureiro. Depois de se retirar da EDP, Electricidade de Portugal, em 1994, passa a assessor das empresas do grupo.
     Manuel Nunes de Almeida completa o CODA (Concurso para Obtenção do Diploma de Arquitecto) em 1958 com 19 valores. Antes de entrar para a HED, trabalha com Fernando Eurico, arquitecto que se notabiliza posteriormente pelo seu trabalho em África, e Anselmo Gomes Teixeira. Em 1954, projecta com estes arquitectos duas residências (uma na Costa Nova e outra em Chaves), além de um stand montado no Palácio de Cristal no Porto. Deixa a EDP em 1990 tornando-se assessor desta empresa. Durante este período torna-se consultor na área das artes plásticas, integrando o júri de selecção de exposições na Cooperativa Árvore, ou fazendo parte, com Bernardo Pinto de Almeida, Alexandre Melo e Fernando Pernes, da comissão de aquisições para o acervo de arte contemporânea da Fundação de Serralves (1990-1996). Em 2008, o Museu da Imagem da Câmara Municipal de Braga monta a exposição Vislumbres a partir de fotografias inéditas e “experimentais” recolhidas por Nunes de Almeida entre 1961 e 1965. Foi ainda secretário da Secção Distrital Norte do SNA.
     Com Rogério Ramos, João Archer e Nunes de Almeida traçam alguns princípios “ideológicos” que serão primeiro seguidos nos projectos para o aproveitamento hidroeléctrico do Douro Internacional. “Respeito pelo ‘sítio’; exclusão de formas vernáculas; cumprimento integral da função; ou pormenorização geral” – estão entre um conjunto de regras para Picote, cujo plano geral arranca logo em 1953. A isto chamam “segundo modernismo” em oposição à prática que começa a emergir em Portugal com o aprofundar do conhecimento da arquitectura popular que o Inquérito, lançado em 1955 pelo SNA, permite e que coloca a arquitectura nacional no eixo do criticismo enunciado pela “terceira via”. Preferem o caminho da continuidade com o moderno, denunciando o “decorativismo regionalista” que forma muita da produção pós-inquérito. Esta posição reflecte-se na “ortodoxia” com que prosseguem a lição moderna e que se exemplifica na clara correlação entre plantas, alçados e volumes que os seus edifícios revelam. A ideia de “projecto total” – “da colher à cidade”, como afirmam – que obriga inclusive à concepção de objectos para uso quotidiano (mobiliário, baixelas, tecidos, paramentos, etc.), prende-se com  a inexistência de uma oferta de “desenho contemporâneo” por parte da indústria e do mercado da época. Paralelamente partilham o que identificam como “espírito de serviço, onde só as melhores soluções servem”.
     Para Picote, numa paisagem remota e não humanizada, João Archer ocupa-se então da central e do edifício de comando (1954-1958), assim como do bairro do pessoal especializado (1954-1964); Nunes de Almeida encarrega-se das cinco residências para pessoal dirigente (casas para engenheiros), do centro comercial (1955-1958), hoje descaracterizado por obras recentes, da escola primária (1954-1957) e da capela (1958); Rogério Ramos deixa a sua marca na estalagem (1957-1959) e nas estações de tratamento de águas. Segundo esclarecem, pode todavia considerar-se que estes projectos resultam de um “verdadeiro espírito de equipa” e não de uma abordagem individualizada numa perspectiva de autor.
     De entre o conjunto construído, a capela, de Nunes de Almeida, torna-se o edifício mais publicitado neste período, reflexo provável do debate sobre os espaços litúrgicos aberto em 1953 pelo MRAR (Movimento de Renovação da Arte Religiosa). Assim, em Janeiro de 1959, um artigo de Costa Barreto é publicado no Comércio do Porto, onde se salienta a “intensidade e pureza da sua mensagem evangélica, oriunda da intenção funcional e estética que presidiu à sua realização”. Do mesmo autor, mas na Colóquio: Revista de Artes e Letras, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, surge em 1960 um novo artigo, onde se dá notícia da exposição de arte sacra realizada no Paço Episcopal do Porto em Junho de 1959. Aqui, a nova arquitectura religiosa, desenhada “sob a égide da simplicidade quer na organização do espaço interno, quer nos volumes”, é exclusivamente ilustrada com imagens da capela de Picote.
     Entre as décadas de 1950 e 1990, modifica-se o quadro da produção de energia em Portugal. Novas estratégias ditam a criação de novas estruturas empresariais. Em 1969, a HED e as restantes quatro empresas que constituíam a rede primária deste sector fundem-se sob o nome de Companhia Portuguesa de Electricidade (CPE). Após a Revolução de Abril, todas as empresas do ramo da electricidade são nacionalizadas, surgindo em 1976 a EDP. As sucessivas alterações aumentam, territorial e programaticamente, o campo de trabalho para esta equipa de projectistas que se mantém activa até à idade da reforma.
     Assim, se o Gabinete de Arquitectura da HED começa por ampliar o seu raio de acção com a fusão que cria a CPE, a formação da EDP implica o alargamento dos projectos a todo o território nacional. Nunes de Almeida, p.e., desenha a arquitectura das centrais térmicas de Setúbal, Sines (1988) e Pego (que não termina por atingir a idade de reforma), as subestações de Sines e de Fernão Ferro e as centrais de turbinas a gás em Tunes e Alto da Mina. João Archer, por seu turno, é responsável, entre outros projectos, pelo Despacho de Sacavém ou o edifício de distribuição de Beja. Antes da sua morte prematura aos 49 anos, Rogério Ramos deixa igualmente obras notáveis, como o bloco habitacional da Régua ou o aglomerado de Faia – a reconstrução de uma aldeia inundada pela albufeira de Vilar.
     Tanto João Archer como Nunes de Almeida recusarão sempre a influência brasileira que lhes é imputada posteriormente, por autores como Domingos Tavares ou Michele Cannatá e Fátima Fernandes, e que se repetirá em provas académicas que reforçam a importância que o seu trabalho tem ultimamente merecido. Preferem inscrever Walter Gropius ou Le Corbusier como mentores. A sua maior dívida, contudo, vem da ESBAP reformada por Carlos Ramos e do convívio com outros estudantes, como Fernando Távora ou Nadir Afonso, seus contemporâneos.
     Uma atenção mais alargada aos seus percursos tem-se portanto verificado desde que a revista italiana Abitare, pela mão de Michele Cannatá e Fátima Fernandes, lhes dedicou a reportagem “Portogallo, architettura, ingegneria, territorio” (nº 338, 1995). Antecedeu a exposição montada no edifício da Relação do Porto, Moderno Escondido: Arquitectura das Centrais Hidroeléctricas do Douro Internacional, 1953-1964 em Outubro de 1997, comissariada pela mesma dupla de arquitectos e que estaria na origem do pedido de classificação patrimonial da barragem de Picote por parte do IPPAR em 2002.
     Actualmente os dois arquitectos vivem no Porto, onde continuam as suas carreiras profissionais. Nunes de Almeida mantendo-se ligado preferencialmente à área das artes plásticas; enquanto João Archer enveredou pelo domínio da consultoria em arquitectura e urbanismo, apoiando, juntamente com Alcino Soutinho, a CAPC, empresa de empreendimentos imobiliários, que na Senhora da Hora tem em curso uma urbanização com cerca de 1000 fogos.|

 


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